Purim está chegando e, com a festa, um monte de atividades fofinhas para levar as crianças. Sem olhar a agenda de eventos, posso chutar que vai ter pecinha sobre a história de Ester na sinagoga, festival de fantasias no clube e oficina de máscaras na escola. A novidade deste ano, como não podia deixar de ser, é virtual. Tem um vídeo muito fofinho e bem produzido (em português!) em que duas crianças explicam o básico de Purim para outras crianças.
O problema, como gosta de
dizer meu colega colunista de Pinat Brasil, Michel Gherman, é que “à educação judaica não basta ser fofinha”, ao que eu
acrescento: “ela precisa ser transformadora.” Aqui eu
faço um desafio: participe das atividades de Purim dos seus filhos e se
pergunte em que medida as crianças estão sendo transformadas. Não me entenda
mal: quando
bem feitas, todas
as atividades
que eu descrevi acima têm potencial para serem
transformadoras. Oficinas de máscaras que incentivem as crianças a pensar em quais
são as situações em que elas se apresentam com “máscaras”, sem ser quem elas
realmente são; desfiles de fantasias que ajudem os alunos a desenvolverem a
empatia e a se colocarem no lugar do outro; pecinhas
sobre a história de Ester que não ignorem os diversos aspectos complexos desta
história. Vamos falar um pouco mais sobre isso….
Pra começar, se você vai
encenar a meguilá, não deixe de lado os últimos capítulos. São neles que ficam os aspectos normalmente considerados os mais
problemáticos desta história e que, por isso mesmo, são escondidos debaixo do
tapete na maioria das vezes.
Depois que a intervenção de
Ester junto ao rei Achashverosh para cancelar o decreto de Haman não tem sucesso (o rei argumenta que nem ele pode cancelar uma
ordem real), “o rei permitiu aos judeus de todas as cidades que se organizassem
e lutassem por suas vidas; e para destruir, massacrar e exterminar as forças do
povo ou da província que lhes atacassem, incluindo
mulheres e crianças, e saquear suas posses. (…) E em cada cidade que o decreto
real chegou, houve luz e alegria, júbilo e honra entre os judeus”.[1]
É mais ou menos aí que a
história que nós contamos a nossas crianças termina e que o problema começa…. Nos dois capítulos seguintes, é detalhado como, em
resposta ao ataque planejado por Haman e, com a autorização do rei, os judeus
mataram mais de 75.000 pessoas, incluindo os descendentes de Haman. Há duas
linhas clássicas de argumentação em defesa desta
atitude da comunidade judaica da Persia: (1) tendo em vista que Haman tinha
planejado exterminar todos os judeus do reino, a postura judaica foi apenas de
“legítima defesa” e a responsabilidade sobre as vítimas deve recair sobre
aqueles que planejaram ou tomaram parte na tentativa
de exterminar os judeus; e (2) dado o mandamento bíblico de exterminar Amalek[2] e a associação clássica de Haman com aquele povo[3], o assassinato de seus descendentes se enquadra na
observância de um mandamento bíblico.
Contra o primeiro argumento, salta aos olhos a evidência de que a
infra-estrutura do estado persa estava, agora que Mordechai tinha se tornado
braço-direito do rei, ao lado dos judeus e que, desta forma, é difícil creditar
a morte de 75.000 pessoas à tese da legítima defesa.
Parece haver, ao contrário, uma inversão poética na qual os papéis de
perseguidos e perseguidores são invertidos, sem que o ódio ao outro seja
removido. De qualquer forma, excelente oportunidade de lidar, de forma
pedagógica, com estes temas ao invés de ignorá-los
totalmente.
A segunda justificativa, a
comparação com Amalek, é ainda mais problemática e justifica ainda mais atenção
ao tema na sala de aula. Ao longo dos séculos, a denominação “Amalek” foi
aplicada a grupos com os quais os judeus tinham
desavenças, incluindo armênios e cristãos.[4] Mais recentemente, há aqueles que associem o povo
palestino (ou os árabes em geral ) a Amalek, justificando atos como o massacre
cometido por Baruch Goldstein que, em Purim de 1994, matou 29 muçulmanos rezando na Tumba dos Patriarcas em Hebron. Considero difícil
aceitar a argumentação de que estes temas não devam ser discutidos
criticamente.
Eu pergunto freqüentemente a
pessoas que trabalham em educação judaica por que os dois capítulos finais da meguilá não são, na maioria dos casos,
ensinados a nossas crianças quando elas aprendem sobre Purim. A resposta que eu
escuto normalmente é sobre adequação pedagógica do conteúdo à maturidade da
criança. Veja bem: meu filho não tinha ainda quatro anos e mal tinha começado a entender que era judeu quando alguém achou que
era adequado ensiná-lo sobre o plano mirabolante de um ministro estrangeiro
para matar todos os judeus. Isto pode….. Mas ensinar que os judeus, uma vez que
tinham alcançado o poder, se lançaram em uma campanha
de vingança que deixou um rastro de dezenas de milhares de mortes, aí não
pode!
A verdade é que há muito
pouco de preocupação pedagógica autêntica na omissão deste massacre. O que há,
na verdade, é uma postura ideológica que alimenta o senso judaico de vitimização através das narrativas dos nossos
feriados. Quando nós somos os perseguidos ou as vítimas, pode contar, não
importando a idade do aluno; quando somos nós que agimos mal, perseguindo ou
matando outros, é melhor ter cuidado para não traumatizar
ninguém…
Não há quase nada que seja
adequado ensinar a crianças pequenas sobre a história da meguilá. Para elas, deveríamos focar nas mensagens lúdicas e
positivas que podemos atingir através das máscaras e fantasias (veja as
sugestões no começo do artigo), do mishloach
manot
(envio de comida a amigos, que fenomenal se forem amigos que vivem na rua!) e
dos matanot la’evionim (doações aos necessitados).
Conforme elas forem
crescendo e conseguirem entender todos os elementos da meguilá, podemos ir contando a história
de Purim, incluindo o antisemitismo de Haman e o massacre cometido por vingança
pelos judeus. Outros temas que podemos incluir, conforme a maturidade dos
alunos permitir, são: discriminação sexual, violência doméstica, tráfico
sexual, identidade judaica na diáspora, consumo
excessivo de álcool, relação com as instâncias de poder, sedução, genocídio,
pena de morte, punição coletiva, e outros.
Na segunda parte deste artigo, tratarei do que a história de Purim tem a ensinar para adultos sobre o momento político que o país vive.
[1] Ester 8:11,16
[2] Veja, por exemplo,
Deuteronômio 25:19.
[3] A relação entre Haman e
Amalek é estabelecida pelo fato de que o pai de Haman é
chamado de Agaguita (Ester 3:1)
e Agag era um rei de Amalek que o
rei Saul deixou vivo (Samuel I 15:8). De forma indireta, a relação é insinuada
pelas leituras da Torá e da Haftará do Shabat anterior a Purim (chamado
Shabat Zachor), que fazem referência a Amalek.
[4] Uma excelente análise deste
tópico, bem como da violência judaica relacionada à celebração de Purim, pode ser encontrada em
Horowitz, Elliott (2006). Reckless Rites: Purim and
the Legacy of Jewish Violence. Princeton University Press.
Nenhum comentário:
Postar um comentário